26 de jan. de 2010

 
Bentinho e Capitu e zumbis
Por BRUNO

Seth Grahame-Smith é um sujeito corajoso. Digo isso pelo frisson que vem causando na internet ao publicar Pride and prejudice and zombies, uma divertida mistura de filmes de George Romero com o clássico de Jane Austen.

O barulho deveu-se aos inúmeros fóruns de discussão na internet e sua boa aceitação no mundo "geek", além do autor ser conhecido por inusitadas obras e títulos dos mais variados gostos como O grande livro do pornô e Como sobreviver a um filme de terror.

A ideia do autor é basicamente inserir ataques de zumbis invasores à pacata cidadezinha descrita por Austen, mantendo a atmosfera do livro que foi lançado há dois séculos atrás ao substituir passagens do romance por batalhas contra mortos-vivos sem que se deixe confundir ou mesmo extrapolar o enredo geral - até mesmo as ilustrações mantêm o contexto da obra original. Uma façanha sem precedentes, sem dúvida.

  
É quase impossível não imaginar um de nossos clássicos tupiniquins, a escrita pesada e realista (e às vezes modorrenta) de quase todos os grandes sucessos oriundos do século 19 transformados em relatos de comunidades sitiadas e em estado de alerta total frente à uma insurreição de zumbis. Homens de cartolas e mulheres com vestidos sugados na cintura correndo desesperadamente de seres de andar e gemidos mortificantes. O Alienista de Machado de Assis é o primeiro que me vem à cabeça: em vez de loucos fugindo de um hospício, que tal um bando de zumbis atravessando os corredores, pulando as janelas e tendo acesso às ruas e a população? Hum... me parece básico demais. É preciso trabalhar numa história muito mais densa que nos permita inventar novas passagens em um romance que abrange muitos valores do nosso cotidiano... Uma história de amor... Dom Casmurro! É isso!

Vamos lá: o romance começa normalmente, com a narrativa de Bentinho a respeito de sua mãe, José Dias e os moradores de sua casa, nada de infecção por enquanto. Aliás, esse é uma boa pergunta: como um surto de zumbis começa? Nunca fui lá um grande admirador desses tipos de filmes, mas a iniciativa de Seth Grahame-Smith realmente me chamou a atenção para o assunto. Ouvi o Nerdcast de zumbis para me certificar de como nascem e são destruídos os zumbis.

Temos então três alternativas para seu nascimento:

1) Mortos-vivos que andam por aí após um ritual vodu;

2) Mortos que saiem escrotizam por aí após a manifestação de um vírus;

e 3) Mortos que voltam do Inferno. Simples assim.

E mais ou menos como nos contos vampirescos (e não falo dessas galhofas, brilhosas e irritantes que tanto faz sucesso hoje em dia), um ser humano saudável, ao ser mordido, tocado ou sei lá, começa a se transformar, lentamente, na criatura. Temos várias escolhas para conduzir nossa história.
 

Bentinho está apaixonado por Capitolina, a Capitu, e nem preciso falar de seus "olhos de cigana oblíqua e dissimulada", pois eles já foram imortalizados na literatura brasileira. A mãe de Bentinho quer vê-lo em batina de padre e o garoto é tão apegado a ela que nunca conta sobre seu amor pela menina da casa ao lado, então cabe a José Dias persuadi-la do contrário. Bentinho conhece Escobar no convento e fica admirado com sua energia e seu ímpeto, se despede de Capitu, viaja para São Paulo, se torna homem feito e bacharelado em Direito e aos 22 anos retorna. "Serás feliz, Bentinho", diz a si mesmo.

Mas quando retorna descobre que os mortos cavaram a sete palmos, escaparam dos cemitérios e agora perambulam por todo o Rio de Janeiro em busca de alimento. A cidade está sitiada. A população desesperada. Obviamente José Dias lhe deixou esclarecido de todos os pormenores.

Em meio a todo o caos, Bentinho ficou vislumbrado ao ver novamente Capitu, muito mais linda do que jamais vira e casa-se com o seu grande amor. Queria acima de tudo protegê-la dos perigos que corria a humanidade.

Existiria aqui o ciúme de Bentinho? Talvez valha a desconfiança, mas de outra forma: Bentinho não sabia discernir as pessoas dos zumbis, ou sempre estranhava um leve sinal de contaminação que os deixassem em perigo.

Confinados em suas casas, Bentinho, Capitu, Escobar - agora um homem de negócios bem sucedido - e sua esposa Sasha (amiga de infância de Capitu) vivem juntos quase o tempo todo. Escobar levantou suspeita em Bentinho ao sair de um dos quartos de sua casa, dizendo estar a conversar com Capitu, e a mesma sequer ouvia o que o marido lhe dizia. Percebendo a insatisfação de Bentinho, Capitu revelou ao marido o que havia conversado com Escobar: ele comprou um martelo de 5 quilos, para rachar o crânio de qualquer zumbi que se aproximasse de sua propriedade. E afirmou que Bentinho poderia usá-lo. Ele engoliu a seco, seja lá o que sentia.

Tio Cosme, prima Justina e Dona Glória faleceram devido ao contato com as doenças que invadiram as casas ao espalharem a moléstia dos corpos devorados e apodrecidos nas ruas. Escobar agia estranho aos olhos de Bentinho. Parece extasiado demais. Sempre falando em nadar os sete mares. "Estava fora de si", pensara Bentinho. Os suprimentos também estavam acabando e as autoridades do Segundo Império solicitavam ajuda do exterior, mas a situação estava mesmo calamitosa.

Bentinho trabalhava em seu escritório quando recebeu a notícia de um criado: Escobar morrera afogado. Vestindo seu traje especial para conter a contaminação a qualquer ataque zumbi, reconhecera o corpo do amigo, com aspecto inchado e assustador: nos olhos, nas veias do corpo, tudo levava a crer - a Bentinho e aos curiosos que se arriscavam ao ar livre só para admirar o morto - que Escobar tinha sido contaminado por algum zumbi. Num estalo, Bentinho lembrou-se de Escobar perambulando por sua casa em horas inapropriadas, dos olhos de Sasha que cruzaram com o seu, "eles pediam socorro", segundo sua interpretação; José Dias, no seu leito de morte, suspirou e entusiasta dos superlativos, elogiou o "lindíssimo" dia antes de falecer e arrancar lágrimas de seus olhos. A doença causada pelos corpos das vítimas dos zumbis acabara com a vida de seus próximos e os vivos agiam de forma estranha. Até mesmo sua querida Capitu. Oh! Tudo agora fazia sentido: a mulher de sua vida era um zumbi!!! Oh não! o que fazer?!! Bentinho não suportava ver seu filho, Ezequiel, que assim como Escobar tornar-se-ia um zumbi sedento por carne humana, pelo simples fato de ser gerado por uma mulher contaminada! Ele não queria alardear as autoridades ou até mesmo deixar Capitu ressabiada, mas teria que se livrar dela e do filho. Bentinho ruminava de rancor e ódio contra qualquer um daqueles bastardos que andavam pelas ruas e o deixava preso entre quatro paredes.

Bentinho descobriu uma clínica de reabilitação contra zumbis na Suíça e levou Capitu para lá se recuperar, enquanto percebia a longa e exasperante transformação de seu filho em um daqueles seres horrorosos - espasmos sutis, tiques e diversos indícios de seu futuro desesperançoso. Em Jerusalém Ezequiel não resistiu à metamorfose e morreu (dizem, porém, que ele decidiu-se por morrer enquanto a transformação definitiva em zumbi lhe tomava de assalto, teve Ezequiel total consciência do que estava para se tornar). Seus amigos, mesmos mortificados pela perda, lhe homenagearam, enterraram o corpo num cemitério específico para contaminados e cobraram as despesas a Bentinho, que espremeu em seu coração o alívio de não ter que jamais encarar seu filho zumbi.

Ruminando a dor de perder seu filho, seus familiares e de ter que se afastar de seu grande amor por causa de sua suspeita de contaminação, Bentinho deixou de ser um homem de palavras e agiu: "Chega!", disse ele. Desceu os degraus em dois até a porta principal, arrombou-a com um chute forte e munido de seu martelo de 5 quilos saiu a combater os zumbis que corriam desgovernados até terem seus crânios violentamente esmagados contra o chão úmido e pestilento. Bentinho não temia o exército de homens e mulheres deformados que pareciam brotar por entre as casas desertas (nenhum humano à vista). Ele lançava o martelo para trás até encurvar-se sobre o próprio corpo e, com toda a força que tinha, lançava-o à frente - uma martelada podia dividir um zumbi ao meio, ou esmagá-lo por completo. As mãos fedorentas, os braços de tonalidade verde, os corpos que se despedaçavam aos poucos estavam mais próximo de si e ficou impossível de Bentinho livrar-se de seus inimigos. Ele foi rapidamente morto, devorado pelos dentes podres de bocas leprosas e cheias de salivas. Bentinho jamais desistira. Foi a última resistência de que se teve notícia.

Faleceu com a dúvida: era Capitu um zumbi ou não? E por que jamais a esquecerá? Bentinho sequer pode escrever sua História dos Subúrbios. Tempos depois, fiquei sabendo que o sítio teria sobrevivido a cinco anos de ataques zumbis. Milhares de mortos depois, os zumbis foram morrendo devagar, disseram-me que um dia olharam das janelas e já não havia mais nenhum morto-vivo pelas ruas. Estávamos livres. Ou não me seria permitido contar-lhes essa história...

 
Viu? Ideias não faltam. O que nos resta é somente serem criadas editoras genuinamente brasileiras que se inspirem na Quirkbooks, editora responsável pela publicação de livros engraçados e estranhos como Pride and prejudice and zombies lá na gringa.

E o que você acha? Capitu foi mesmo contaminada? Ou não? Era tudo obra da imaginação de Bentinho? Bem, só nos restam aqueles "olhos de cigana oblíqua e dissimulada"...
 

Abraços!
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BRUNO não tem paciência para discutir em fóruns na internet 

3 comentários:

Caio Coletti disse...

Rs, eu também não tenho paciência pra fóruns. E, pessoalmente, como não li Jane Austen, acho a idéia do Grahame-Smith muito original, de certa forma. Tudo bem que se ele criasse uma trama toda sua seria ainda mais criativo, mas misturar Austen e zumbis é uma idéia única. rs. Enfim, quem sabe livros como esse não aportam por aqui?

Abraço! :D

P.S.: Tem um selo lá no Anagrama pro seu blog! :D

Uvirgilio disse...

Dom Casmurro teve várias outras versões por outros autores, muitas não me agradaram, como a de sexo de papel, mas essa sua, adorei, muito criativa, trocar a pergunta se Capitu traiu ou não com Escobar por Se ele era ou não uma zumbi. Lendo o seu texto me apareceu uma dúvida, é Sasha ou é Sancha que foi a esposa de Escobar, no seu texto está Sasha, mas se não me engano é Sancha, mas posso estar enganado. Outra coisa que tenho que falar é que vendo as fotos da minisserie, me veio uma saudade danada dela, pra mim foi uma das melhores minisseries produzidas pela globo, aliás a globo nos últimos dois anos tem produzido excelentes obras, Capitu, Maysa, Cinquentinha e Dalva e Herivelto. Desculpa por não vim muito aqui, mas saiba que é sempre um prazer ler um texto seu, e não saia nunca da blogosfera.

Superlativo disse...

Então, Virgílio, a versão que eu li e até encontrei na internet, foi Sasha ou Sacha, fiquei na dúvida também.

Adorei a minissérie "Capitu", em meio aos BBBs da vida, A GLOBO AINDA FAZ COISA QUE PRESTE RSRSRS

Obrigado pelo prestígio

Abraço!

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