11 de jan. de 2010



Kafka também se divertia, meu bem...

Por BRUNO


Era de tardizinha, mas a luz do sol, mesmo que pouca, ainda brilhava e o céu estava vermelho, de leste a oeste. Ela estava mole na cama e coberta de roupas enquanto eu estava de pé, totalmente nu, observando a paisagem que não se modificara nos últimos 30 anos. A discussão não tinha sentido. Por isso mesmo a coisa esquentou.

- O que você pensa que eu sou? - ela que me disse.

Estava rangendo os dentes de raiva. Mas nunca levantei um dedo em sua direção. Prometo. O que você acha que eu sou? Respondi perguntando. Acho que você é uma frígida. Murmurei. É isso o que você é. E ela me respondia coisas difíceis de se ouvir em meios aos urros e os socos no colchão - e as roupas de cama - que participaram da nossa última tentativa de uma vida sexual feliz.

Havia me esquecido de mencionar a origem da discussão. Perdoem-me. Confesso minha vergonha. E que Gertrudes, a minha senhora, estava limpando a casa quando encontrou algumas revistas pornográficas de minha extensa coleção. Sempre mantive segredo. Verdade. O que há de errado? Não vou me explicar para vocês leitores. Devia uma palavrinha somente a minha querida esposa que permanecia em estado mórbido em nosso leito. Comecei a me defender da pior maneira possível: recostando-me na imagem de outra pessoa muito mais brilhante que eu.

E a diferença é inimaginável: entre ele e eu estão A Metamorfose e O Processo
. O máximo que eu fiz na vida foi um berçinho para meu guri. Hoje é homem feito e nunca me disse um obrigado...

- Sabia que o Kafka tinha sua coleção de pornografia também?

Misturando indignação submissa tão peculiar a ela, disse-me E o que o porra do Kafka tem a ver com isso, seu depravado? Aí eu disse Mas é verdade! Ele guardava tudo num baú que ficou mais de 85 anos em segredo! Depois informei a importância do escritor - um dos maiores do século XX, não me esqueci de mencionar - mas Gertrudes não estava para aprender coisas de literatura. Ela sempre preferiu telenovelas e as mesmices de sempre. E acho que agora ela odeia de vez qualquer escritor de qualquer época.

Achei melhor nem mencionar que entre as figuras das revistas de Kafka estava a de um sapo chupando um pinto. Tem coisas que me dão asco. Mas não achava que era para tudo isso. Não a minha simples coleção de pornografia heterossexual, saudável e a cima de tudo, de bom gosto.

- Você perdeu a noção de tudo, Ramiro - disse ela ainda em prantos. - A nossa vida sexual ficou tão ridícula que era preciso que você se entreter-se com essas porcarias? Pelo amor de Deus! 

- Você me entendeu mal, querida! - respondi. - Só queria apimentar um pouco a relação. Sabe aqueles quadros do Fantástico? Então. E esse tipo de coisa que a gente vê hoje em dia.

- Cala a boca Ramiro!

- Não me leve a mal...

- Imbecil!

- Você está com muita raiva... - murmurei. Mas se já não fosse o bastante toda esta estupidez, dei um jeitinho das coisas piorarem. - Está com tesão? - perguntei como um cafajeste. - Quer que eu te dê um jeito agora? O abajur que veio em minha direção e acertou em cheio a janela quebrando as vidraças talvez dissessem NÃO. Não se preocupem, recebi a mensagem. Ela se levantou e em dois ou três passos sumiu do quarto. Aí pensei comigo: "Acho que parei nos anos 20..."

Gertrudes sempre foi pudica ao extremo. Quando a idade foi chegando parecia que o sexo sequer passava pela sua cabeça. Bons tempos em que eu me divertia e dava prazer para meu benzinho. Só me resta lamentar e torcer pelas boas notícias.

Mas o pôr-do-sol era o mesmo daqueles tempos onde tudo eram singelas conotações sexuais e volúpia (e um pouquinho de pele das pernas descuidadas que saiam pela saia). Aquele período de minha vida ficava mais fresco em minhas memórias quando observava o céu através dos estilhaços do vidro que ainda resistiam na janela.

Eles ainda resistiam ao inevitável e melancólico fim das coisas.

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BRUNO não que ficar velho e inutilizável

6 comentários:

Uvirgilio disse...

Que bom que vc voltou a blogosfera, fico feliz com o seu novo projeto, e claro está mantida a parceria.

Vinícius Cortez disse...

Só não digo que não esperava nada tão estranho pq já li alguma coisa de Kafka :D

“Quando certa manhã Franz Kafka acordou de sonhos intranqüilos povoados de sapos boqueteiros..."

Ananda V. Sgrancio disse...

Nunca havia lido nada sobre o Kafka. Mas gostei dele, me lembra muito a vida de um amigo meu. E na realidade.



www.opiniaoinutil.net

Vinicius Colares disse...

cara, muito criativo, além de transparecer um elevado nivel de cultura geral!!!!
muito bom

Marcus Alencar disse...

Ainda não tive a oportunidade de ler para valer Kafka pois não sei se estaria realmente preparado para ``digerir`` tanto ocnhecimento e reflexão gerados pela minha passagem ao ler seus escritos.

Unknown disse...

sem palavras hahaha kafka nosso rei :)

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